Uma Distribuição de Correio
Molumbo,1966
Por: Manuel Pedro Dias
Dez horas da noite. O Unimog tardava da viagem que fizera a Vila Junqueiro com a missão de trazer o correio. Não estávamos receosos que algo tivesse acontecido, pois sabíamos que quem fazia aquela viagem, sempre muito disputada, se esquecia de regressar, em virtude de, naquela bonita vila, rainha do chá, encontrar atractivos suficientes para compensar o tédio vivido no Molumbo. Estávamos, isso sim, desejosos de ver na nossa frente o saco de correio com o seu precioso conteúdo. O tempo decorria. A rapaziada deambulava em redor do aquartelamento, impaciente. Ninguém se deitava. Se tantas noites se perdiam, obrigatoriamento, em patrulhas e sentinelas, porque não esperar até de manhã, se necessário, para receber a mensagem tão desejada?
Ao longe avistam-se os faróis do unimog. Quase em uníssono foi ouvida a frase: - Lá vem ele!- com a chegada da viatura a algazarra e a axcitação recrudesciam. Entretanto uma voz se eleva acima de todas:
- Todos para a cama seus <<>>- gritou o Capitão Veiga – hoje não há correio para ninguém. Estou farto de dizer que não quero barulho
-Oh meu capitão- disse um- a malta está sossegada. Dê lá aordem para distribuir o correio.
-Oh meu capitão - disse outro- então eu estou à espera de carta da miúda que já da última vez não mês escreveu. Não nos faça uma coisa dessas.
As solicitações foram surgindo, embora os que conhecem bem o capitão Veiga soubessem que a distribuição seria efectuada.
- Lontrão, abra lá o saco e dê o correio a estes <<>>, mas sem barulho estão a ouvir?
À luz do petromax, os nomes iam surgindo sempre seguidos dos clássicos: <<>> ou <<>>. Finda a tarefa da distribuição, vinha para alguns a desilusão e a tristeza, e que tristeza, pois só quem viveu esses momentos pode avaliar o que é não receber uma carta dos seus entes queridos. Para outros, o mais felizardos, havia que procurar qualquer foco de luminosidade e <<>> num ápice toda a correspondência, porque os pormenores, esses, seriam feitos numa 2ª,3ª ou 4ª leituras. Entretanto, os analfabetos aguardavam, ansiosamente, de carta na mão, que o seu amigo mais íntimo, (pois estas particularidades não se davam a qualquer um) acabasse a leitura da sua missiva para, de seguida, lhes ler as notícias dos seus familiares. Refiro-me a propósito, que no final da comissão, muitos destes homens já saberiam ler e escrever, graças à sua força de vontade, e à disponibilidade de alguns elementos da companhia, que ministravam as aulas de acordo com o seu tempos livres.
No dia seguinte, havia que pôr toda a <<>> pois, a qualquer momento e por qualquer motivo, uma viatura poder-se-ia deslocar a Vila Junqueiro, aproveitando assim para transportar o correio. Então, por todos os lados se viam homens escrevendo, sentados nas camas, na escadaria do aquartelamento ou em qualquer outro lugar, tendo como mesa os próprios joelhos. As esferográficas corriam céleres sobre o papel, mas de vez em quando, um ou outro parava. Havia que meditar, por vezes, na mentira a pregar aos familiares mais queridos, não lhes contando o modo como vivíamos, mas, pelo contrário, dar-lhes a ideia que não lutávamos com qualquer carência - a nossa vida era um <<>>…
Uns diziam que trabalhavam na secretaria nunca indo, por isso, para o mato. Assim, havia que montar um sistema bem organizado com o envio de cartas, quando chegava a sua vez de partir efectivamente para o mato. O único processo era deixar aos companheiros, no aquartelamento, as cartas já escritas e numeradas para serem enviadas com a devida ordem. Deste modo, os seus familiares nunca sentiriam a falta do correio.
Outros, respondendo ao apelo dos pais - come bem meu filho não te deixes emagrecer, vê não adoeças- diziam: Qual quê meus pais aqui, felizmente, não há dificuldades, veja bem que hoje o nosso almoço foi bife com batatas fritas ( este prato durante 11 meses que permanecemos no Norte, nunca nos passou pela frente ). Outros, ainda com a imaginação mais fértil, retirávamos bancos do unimog, colocavam-nos debaixo duma árvore florida, convidavam um ou dois <<>> e <<>> uma fotografia que enviavam e diziam que estavam num bom e aprazível local que até possuía jardim.
Eram estas e outras mentiras análogas que nos deixavam com uma certa sensação de alívio, ao pensarmos que, com elas, minimizaríamos a angústia vivida pela grande maioria dos nossos familiares.
Se para nós a chegada duma carta actuava com uma enorme força sobre os nossos espíritos, qual <<>>, o mesmo se poderia dizer em relação aos entes queridos na Metrópole, pois eram elas o único elo de ligação que nos unia.
Ao encerrarmos este capítulo, ficámos com certeza que o abordámos duma forma muito sucinta, mas, ao mesmo tempo, dum modo muito sentido, por sabermos e vivermos a força que uma carta representava para nós. Esse simples pedaço de papel que tanta saudade, longínqua, encerrava dentro de si, e cuja mensagem final nos dava aquele ânimo para sobrevivermos até ao desejado dia do desembarque na Metrópole.
ADEUS, ATÉ AO MEU REGRESSO
(para muitos não houve regresso)
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