quarta-feira, 29 de abril de 2009

Miandica o segredo


MIANDICA, O SEGREDO

Por: Eduardo Mendonça

C.Caç 1559


Depois de termos percorrido a sinuosa serra do Catur chegámos finalmente a
Nesta localidade assistimos, imediatamente após a nossa chegada ao primeiro
acto bélico que nos deixou completamente perplexos por antevermos o que iria ser o nosso
futuro por terras do Niassa.
Fazendo um barulho ensurcedor, acabava de dar entrada em Vila Cabral uma
patrulha de milícias, comandada pelo lendário Daniel Roxo, que além de vário material
apreendido traziam também alguns prisioneiros.
Passado algum tempo fomos informados, pelo Cap.Veiga, que um pelotão
(reforçado) da nossa Compª iria render um outro, de Cavalaria,( C.CAV. 1607 ) sediado em
Miandica.
O escolhido foi o 1º pelotão comandado pelo Alf.Coelho, os Furriéis
Milhinhos, Dias, Lacerda e nós próprios.
Recebida a “ordem de marcha” seguimos, em coluna auto, rumo a Meponda
povoação que pela sua situação geográfica ( junto ao Lago de Niassa) e a curta distancia de,
cerca de 20 Kms, que a separa de Vila Cabral, se tornou antes da guerra, numa aprazível
estância balnear.
Nesta povoação, zona de intensa acção subversiva, encontrava-se a C.CAV.
1601, comandada pelo actual Major Mário Tomé mais conhecido, então, por “Capitão Inglês”.
Pelas 15 Horas do dia seguinte embarcámos em lanchas LDM que foram
fazendo escalas a fim de deixarem as outra unidades do Batalhão.
Nós, 1º Pelotão, desembarcámos no N`goo, pequeno aldeamento contituído
apenas por algumas palhotas.
Levando como bagagem a inseparável G3, cantil e 2 rações de combate,
iniciámos, assim, a dura caminhada rumo ao grande segredo que era MIANDICA.
Dada a nossa qualidade de estreantes no verdadeiro “palco” da guerra, à
medida que a marcha prosseguia mais os nervos se apoderavam de nós ao ponto de desconfi-
armos da nossa própria sombra…
Durante a noite enquanto descansávamos, uma fortíssima trovoada caiu
sobre nós provocando ainda mais o desânimo entre a rapaziada.
Pelas 17 horas, avistámos o local que nos iria acolher durante 2 infindáveis
meses.
O barulho, de alegria, feito pelo pessoal substituído (CAV 1507) era enorme deixando-nos por isso completamente atónitos : - Como iria ser possível viver em tais condições!
O destacamento, protegido por barreiras de terra, feitas pela máquina dum
pelotão CEngª 1531 que ali se encontrava a laborar a construção duma futura pista de aviação,
era constituído por abrigos escavados no chão e com chapas de zinco a cobri-los. Serviam, ao
mesmo tempo, para o pessoal dormir. Os mais afortunados tinham como cama uma saca de
batatas vazia, atada a dois paus evitando-se, assim, o contacto com o solo.
A comida escasseava, pois, além de latas com chouriço, carne de porco
Conservada em barricas com sal e pacotes de massa, alguns já com bicho, pouco mais
Poderíamos encontrar no nosso reduzido stock alimentar.
A água, elemento essencial para a sobrevivência de qualquer ser humano,
também era escassa visto o local de abastecimento ser, por um lado, de difícil acesso e perigoso
uma vez que, “Unimog” e secção de apoio terem de percorrer uma zona de pouca visibilidade,
por outro, a água ser recolhida num riacho e os bidões de 200 L serem cheios com púcaros o
que tornava a operação bastante morosa e perigosa.
Certo dia, já ao cair da tarde, regressava a secção do Milhinhos ao
destacamento, após ter efectuado a segurança à máquina de engenharia, quando foi surpreendida
por um intenso tiroteio vindo do interior da mata. Viso que a progressão da secção ser efectuada
em campo aberto receámos o pior, mas, graças à pronta intervenção dos elementos que se
encontravam aquartelados, com especial destaque para o soldado mec. de engª o “Alfama”
e o homem da bazuca de seu nome “Marinheiro”, o inimigo pôs-se em fuga, chegando os nossos amigos são e salvos.
Recordamos ainda o dia em que tivemos a visita, inesperada, do Comandante
do sector “A”. Provavelmente, terá sido esta a recepção mais “sui generis” de toda a sua carreira militar.
Após verificarmos de quem se tratava, foram dadas ordens a todo o pessoal, não
se descorando a segurança . Devidamente “ataviados” (tronco nu, em cuecas, barba e cabelos
compridos) assim o fizemos.
Com olhar indignado, perguntou o Ten.Cor.: Mas que é isto? Será que estou na presença de um bando de marginais?
Depois de devidamente elucidado da forma como a ida do pelotão para
Miandica se processou, sem hipótese de levarmos qualquer objecto pessoal, louvou-nos o Com.de Sector pelo espírito de sacrifício patente em todos nós.
Não seria justo falarmos de Miandica e não recordar uma figura que nos
Acompanhou desde a estação de Mutuali. Referimo-nos, ao “Leão” nome dado ao cão, de raça
pastor alemão, que quando embarcámos na estação de comboios de Mutuali, rumo ao Niassa,
entrou na nossa carruagem nunca mais nos abandonando. Além de excelente sentinela, era ainda
quem nos avisava que dentro de momentos estaria a chegar a avioneta de reabastecimento.
Infelizmente, para nós, que este alerta foi dado poucas vezes…
Já vão longos, estes respigos sobre a nossa viagem e estadia em Miandica.
Porém, estamos convictos que tudo o que foi escrito não passa duma pálida imagem do que foram os dois meses passados naquela região.
Por isso, ainda hoje decorridos todos estes anos recordar MIANDICA se torna
Um verdadeiro pesadelo!!!

Texto transcrito da Revista nº 2 “O Batalhão” de 1996


Eduardo Mendonça



MORTE EM MIANDICA


Por: António Carvalho

CCAÇ 1558

Fiz parte do ultimo grupo da Companhia Caçadores 1558 que foi destacado para Miandica.

Não vale a pena descrever as más condições, a todos os níveis, que lá passámos nos 3 meses que durava o destacamento, pois isso é do conhecimento de uma grande parte dos ex-militares que compunham o Batalhão de Caçadores 1891. Desde a falta de comida, correio, tabaco que foi muitas vezes a nossa única companhia.
Mas vou descrever um episódio, o último naquele lugar longe de tudo.
No dia 25 de Fevereiro de 1968, estava para chegar o novo grupo de combate que nos ia substituir, para podermos regressar a Nova Coimbra já que o nosso tempo de comissão estava a terminar.
Antes da chegada, combinamos com todos , o Alferes Quintas, que substituiu o alferes Sancho por ter sido ferido em combate, resolveu pregar uma partida aos “Checas”, trocando todos os postos, tendo ele passado a soldado e cabendo a mim o galão de Alferes.
Quando chegaram os novos, depois de termos recebido as instruções para o novo desempenho de funções, dirigi-me ao Alferes que comandava os “Checas” e apresentei-me como sendo o Alferes Quintas.
Todos com os Postos trocados
Depois de uma curta conversa, comecei a mostrar as instalações, que eram fáceis de visitar, pois quase nada havia.
Andei por cima da barreira que nos protegia, com o já citado novo comandante, explicando-lhe quais as zonas consideradas mais perigosas e de possíveis ataques.
Passado algum tempo e conforme já previamente combinado, separei-me por uns momentos do meu interlocutor e rapidamente voltámos aos respectivos postos, coloquei os meus óculos escuros, graduados, para não ser facilmente reconhecido e então o verdadeiro alferes Quintas tomou o seu posto e foi ter com o seu homologo, contando-lhe a brincadeira a que tinha sido submetido.
Eu fui ter com o meu colega enfermeiro que me ia render e entabulei então a conversa normal de mais Kokuana para Cheka, dizendo-lhe que a zona era perigosa, sujeita a ataques, que ainda não tínhamos tido nenhum por sorte, e que a vida ali era dura.
Recebi como resposta “isso é conversa de Kokuanas para nos meterem medo, pois em Nova Coimbra disseram-nos que havia muitas minas pelo caminho e nada nos aconteceu” .
Cerca das 16.50 horas, quase mal tínhamos acabado esta conversa, sofremos sim um ataque, como penso ainda não se tinha registado por ali, a partir do mato junto à pista de aterragem, com morteiros, bazucas e canhão sem recuo.
Com a surpresa e porque os novos, segundo penso que foi essa a informação que eles me transmitiram, tinham chegado directamente da metrópole, não tendo qualquer experiencia de guerra, muitos, tiveram como reacção deitarem-se no chão não crendo no que lhes estava a acontecer.
Coube-nos a nós, KOKUANAS, rechaçar o ataque, e não me esqueço daquele acto do nosso colega, que não me lembro o nome mas a alcunha “França” que saltou para cima da barreira de protecção e a descoberto, com raiva descarregou os carregadores da G3 para a zona de onde provinha o ataque.

Mas, infelizmente a primeira granada que é disparada pelo inimigo cai dentro do acampamento e mata o meu grande amigo Fernandes, que era o padeiro e que ao sentir o ataque desloca-se á barraca que nos servia de abrigo, buscar a G3 e quando ia para a barreira foi atingido, ficando com a cabeça quase desfeita, (o Fernandes está na foto ao lado a almoçar e com uma caneca na mão).
Mas o pior estava para acontecer, como o ataque tinha sido perto das 17 horas, e o inimigo também sabia, a aviação já não nos podia socorrer, embora tenha sido pedida a evacuação via rádio, ainda a 25 de Fevereiro.
No dia 26 de manhã, apareceu o helicóptero para a fazer a evacuação, só que não havia feridos, mas um morto.
O Alferes Quintas recebeu como resposta que não evacuavam mortos e que teríamos de o enterrar no mato em Miandica, tendo o mesmo dito que isso não faria, mas o carregaríamos mais de 40 km a corta mato, às costas, até Nova Coimbra, já que íamos regressar no dia seguinte aquele quartel para regressarmos a Portugal.
O comandante da aeronave, penso que tocado no coração, resolveu levar, contra todas as ordens, o corpo para Nova Coimbra.

António Carvalho

CCAÇ 1558