sábado, 2 de janeiro de 2010

O INIMIGO ESCONDIDO

Texto de: Germano J.B. Rio Tinto

Alferes da CCAÇ. 1559 em 1966/1967
Coronel de Artilharia 

Naquele dia 28 de Fevereiro de 1967, a manhã havia despontado igual a tantas
outras. Havia sempre a esperança, renovada em cada dia, de que as folhas do
calendário fossem passando, e a hora de regressar, ainda tão longínqua,
acabasse por surgir no meio da alegria colectiva, depois do amargo sabor das
inesgotável horas de sofrimento.
Partiram os três Unimogs gasolina, a prontidão era total e a disponibilidade
absoluta. Havia algumas pontes a vistoriar, construções frágeis que uniam as
margens estreitas do Lualece. Este escorria com violência, semelhante a
tantos outros rios do norte da Província. Era de algum modo a estreia no mato
para mim, saído da Academia Militar ainda há menos de um ano. O brio
desanuviava qualquer sentimento de ameaça, e o colectivo do grupo fazia
desaparecer todo o receio. Nem sequer nos lembrávamos do capitão, em
tratamento em Nampula, a sua presença tornava-se desnecessária.
A picada desenhava-se sinuosa na sua terra vermelha barrenta, ameaçadora
nas suas bermas amolecidas pelas chuvadas recentes, emoldurada pelo capim
alto que ocultava muitos receios e demasiadas sombras. As três viaturas
subiam, quase e cima umas das outras, numa marcha penosa e carregada de
monotonia. Eu viajava na do meio, e olhava alternadamente para a da frente e
para a da retaguarda, tentando ligar à vista aquele grupo tripartido,
demasiado unido para que se pudesse facilmente separar.
Íamos numa proximidade perfeita, e parecia que apenas uma viatura
circulasse naquele ermo povoado de expectativas, em que os olhares não
descortinavam o horizonte, centrados na proximidade do itinerário. E foi
então que o inesperado aconteceu. O silêncio transformou-se num trovão
atroz, a primeira viatura subiu no ar como boneco inofensivo, os seus
ocupantes foram cuspidos para as bermas, uma nuvem de cinzas encheu todo
o espaço visível e o característico cheiro a gasolina e explosivo queimados
preencheu as narinas e os pulmões. De nada valeu a recusa ou o protesto, a
fuga não era possível, estávamos ali irmanados numa desgraça de contornos
ainda desconhecidos. Pouco importava sonhar quando o realismo dos factos se
impunha como uma penedia no trajecto dum viajante.
Chegou então a primeira notícia: o soldado ao lado do condutor, que viajava
sem capacete na cabeça, situação que apesar dos contínuos avisos
frequentemente se repetia, tinha sofrido o violento impacto do dínamo da
viatura na cabeça. Era uma situação demasiado crítica e imensamente
urgente. Olhei à volta, os soldados espalhavam-se pelo chão, alguns choravam,
o desespero tornara-se presente, a desorganização completa. Num só instante,
uma tarefa simples, planeada,
corrente, fora transformada em tragédia. A
fragilidade era enorme, a impotência ocupava
as mentes, os pensamentos voavam sem nexo..
Eu próprio senti os limites tornados presentes
pela novidade duma realidade nunca
experimentada. Senti que era urgente actuar,
mandei fazer inversão da viatura à retaguarda, o rádio estava destruído,
peguei ao colo o malogrado camarada e seguimos, pressupostos, a caminho de
Maniamba. O carro transportava apenas três ou quatro soldados, lutávamos
contra o tempo, alimentávamos alguma pouca esperança, sofríamos sem a
consciência dos factos ... .
Não posso agora narrar, por mim mesmo, o que se passou. A viatura rebentou
nova mina, que tinha ficado para trás, pisada mas não accionada pelas várias
viaturas. Eu e o soldado ferido fomos cuspidos longe, aqueles que ficaram
agarrados á viatura sofreram queimaduras horríveis, e as chamas espalharamse
pela mata e incendiaram o capim. Chegámos por fim á Companhia, que
ouvira os rebentamentos como trovões, e fomos evacuados para o Hospital de
Vila Cabral. Alguns nomes ficaram escritos nas recordações amargas da
Companhia e na história do Batalhão: Simões, Fernandes e Morais.
Hoje, ao recordar factos tão longínquos, não posso deixar de experimentar o
respeito profundo pelo sacrifício dos camaradas aqui recordados, na sua
efémera passagem pelo norte de Moçambique, sucumbidos em terra estranha
e em mata adversa, sem poderem voltar alguns momentos antes a dizer adeus
aos seus, que os aguardavam, contando as horas e sorvendo a saudade.
Porquê eles e não outros, porquê naquela situação, para quê levar a cabo
aquela tarefa provavelmente tão desnecessária e tão inoportuna ? Tudo ficou
por responder mas, á medida que os anos passam ( e são já mais de quarenta)
a saudade vai caminhando acompanhada de interrogações, e as vidas jovens
ceifadas de forma tão brutal clamam certamente por uma vida não
preenchida, por tantos sonhos não acharam espaço e tempo para se revelar.
As guerras, mais uma vez, deverão deixar de preencher o acervo histórico da
humanidade, e nunca mais deverão marcar a condição humana como algo de
absolutamente inevitável, nem constituir um caminho para garantir a paz.
As viaturas retorcidas e irreconhecíveis destas
poucas fotos são como uma agressão imerecida,
como forma de punição por crimes que nunca
foram cometidos...
O "inimigo escondido" permanece, desde há
muitas décadas, dissimulado na perfídia e na maldade, e a sua presença está
essencialmente presente na opressão que vitima os inocentes, aqueles que
marcham empolgados por gritos de epopeia em nome duma Pátria que
frequentemente os desconhece.
Nos plainos de Vila Cabral, em nome dum patriotismo hoje esgotado, as três
vidas ali imoladas apenas podem ser glorificadas pela nossa recordação e
saudade.